domingo, 21 de agosto de 2011

Objetos Identificados




 Assim rimando eu vou chamando uma flor
 E regando e alimentando essa flor.

 E pra alimentar essa flor,
 Enterro a altura medida numa forma
 De sentir as coisas, que estrutura
 Em catedral a noite estrelada
 Na mente do menino que vai no carro com os pais
 E procura fadas modernas, naves espaciais
 E se muda em estranhas saudades siderais
 De camadas mais altas de vida, talvez perdidas,
 Talvez sonhadas, distorcidas.

 Enterro a mente do menino de olhos no alto,
 Enterro os reflexos que maquiaram o asfalto.
 Enterro um ser de estradas, luzes,
 Naves espaciais, suas notas elevadas,
 As canções onde ficaram gravadas, orações,
 E as que gravaram depois
 Fases, casas, estações,
 Sentimentos inúteis em fúteis variações,
 Como o brilho do nada nos postes das auto-estradas.
 Enterro os caminhos internos das canções,
 São agora chaves sonoras de infernos pessoais.
 Encerro de mim grandes, fundas extensões.

 E pra afastar essa dor,
 Transformo em mudo elemento o grito dessa estrutura
 De corredores, passagens e descidas do sentimento, a criatura
 Cuja mordida é passar-lhes por dentro e que eu fecho
 Até florir o branco de um não sentir
 Que é uma raiva de si, de existir, que é alimento
 Para a flor que acalento.

 E pra alimentar essa flor
 Dei-lhe o que fechei num fora dentro.
 Rearranjei as notas, tranquei as rotas
 Girei pro outro lado as chaves sonoras,
 Montei o circuito dos sons que se arrastam no umbral
 Dispus a arquitetura mental nos vãos da criatura,
 Isolei sua estrutura, criei a casca da cigarra
 E o vazio do seu dentro, um dentro vazio
 No meu dentro, meu novo, sombrio, centro
 E deitei sobre as coisas concretadas
 Com o silêncio emocional de uma guitarra
 Se arrastando demorada.

 E assim rimando eu vou chamando essa flor
 E regando e alimentando essa flor

 E pra alimentar essa flor,
 Enterrei
 O menino do espaço, dei à flor funérea
 A sua matéria de luz,
 Mas dando a volta com os meus braços
 Transpunha a clausura, ia achar
 No seu abraço um pedaço
 Das luzes das naves espaciais,
 Reflexos tortos das luzes
 Das naves espaciais,
 E nesse abraço aos pedaços,
 Depois,
 Estilhaços a mais
 Pra além de luzes e braços.

 E os estilhaços vou dando à flor,
 Me cortando e alimentando essa flor.

 E pra alimentar essa flor
 Represo águas passadas:
 Estar a pé no asfalto nu
 E ouvir que escolhi essa estrada,
 E te acusar de jogar
 Com setas adulteradas.
 Encontro no florir desse ser
 Uma forma de não esquecer
 Que pode ser carregada
 E vou cultivando essa flor
 Que ao represar silencia
 A dor que assim cresce e floresce
 E faz melhor e mais útil mal
 Que navalha ou poesia.

 E vou enterrando as luzes
 Das naves espaciais
 Pra alimentar essa flor
 Com os pedaços das naves espaciais,
 Com os cristais rachados
 Dos abraços demorados, sublimes
 E não tão sublimados,
 Que não damos mais.

 E de você me faltando
 Eu vou regando essa flor.

 E vou chamando essa flor
 E regando e alimentando essa flor
 Que em cor escura, ao florescer,
 Fará a dor refugiada aparecer
 Radiografada em novo ser.
 Essa flor invertida
 É a forma traduzida de dizer
 Que as luzes passaram
 E as naves se revelaram
 Reflexos no retrovisor.
 Meu amor,
 É inútil odiar e rimar
 E eu me calo a germinar
 Esse fruto de escura cor.
 O isso que o verso reduz
 A “amor que não pode ser”
 Traduz no corpo o que o verso
 Perverte em jargão e clichê,
 Que morre no tolo rimar,
 Mas vive em adoecer.

 Dou à flor sem abrir mão,
 À outras mãos em mim dou
 Que não as que me entregam
 No comentário ressentido, impedido na razão
 No sentimento confesso, sempre em vão
 No murro na parede, em substituição.
 Às deformas desses vasos nego minha vazão
 E me calo um calo que some em mim
 O que não falo, que fala depois
 Por mim, que assim tem permissão,
 Que pode doer, enfim.

 E assim calando eu vou nascendo essa flor,
 Me calando e alimentando essa flor.

 Essa flor não é arte.
 A arte é pegada do ser que desceu
 À treva analfabeta no fundo do eu,
 Mágoa bruta mergulhada no breu
 Onde não há flor, nem ser
 (Nem breu), com restos
 De objetos identificados
 Que não eram estradas, nem naves,
 Nem luzes, nem cristais,
 Mas algo mais que não veio,
 A não ser nos abraços
 Que não damos mais,
 E ali jaz, luz morta que alimenta
 A raiz da flor cinzenta
 Do meu mudo jardim,
 A florir de volta pra dentro,
 No escuro centro de mim,
 O que abriu nas noites
 De primavera enganada.

 Eu não estou escrevendo um poema,
 Nem estou cultivando uma flor.

 Palavras caem desabitadas,
 Deixadas por coisas
 Que estão germinando
 Enterradas.