quarta-feira, 25 de março de 2015

Fairies wear boots

Eu me sinto melhor
Quando repito o teu nome
Seja minha mulher
Ou seja o meu homem

Tua capa pode ser minha mulher
Teus coturnos, meu homem

Porque nessa noite terrível
Eu me permito a imprudência
De pensar no teu nome

Tua essência pode ser minha mulher
E teu andar reto, o meu homem

Porque nessa noite de abismo
Eu busco um teto em teu nome

Escuta...

A piada ressoa no bar
Mas a plateia não ri,
Constrangida

Porque a piada sou eu,
A piada é a minha vida

Escuta...

O som ensandecido no meu quarto
Sobrepõe a voz do desespero
E sei que a ti ele também apetece

E agora que fins tão cruéis
O destino merecidamente me tece
Eu me permito pensar no teu nome

E a ti que ele trouxe uma tarde
De uma forma tão estranha
Eu apelo, com necessidade tamanha,

Seja minha mulher
Ou seja meu homem

Porque teu mênstruo pode ser minha mulher
Mas teu estilete o meu homem

Porque tua fala pode ser minha mulher
E tua gíria o meu homem

Porque teu sorriso pode ser minha mulher
E teu esgar o meu homem

Entenda, preciso não pensar!
E por isso penso em teu nome
Porque eu me sinto melhor
Quando repito o teu nome

Escuta, tua dor pode ser minha mulher
E esse teu tédio o meu homem

Tuas unhas podem ser minha mulher
O aço em teus dedos, meu homem

Então me deixa,
Me deixa pensar no teu nome

Porque eu vi o que não devia
O que não podia deixar de ver
Mas teu nome me veio à lembrança
E exerceu um belo, perigoso poder

Então deixa dizer,
Me deixa dizer o teu nome

Tanta dor...

E ainda assim, e ainda assim, que coisa,
Como vagalumes que a borrasca não leva,
E continuam suspensos no breu,
Os bizarros, exatos sinais,
(Que talvez eu esteja inventando,
Como invento o poder do teu nome)
Aparecem, piscam na noite de treva,
Na noite absurda e insone

E nessa noite repito teu nome
E repito que devo esquecê-lo

Mas teu cabelo pode ser minha mulher
E esse teu jeito, o meu homem

Teu gesto pode ser minha mulher
O teu cigarro, o meu homem

Tua boca pode ser minha mulher
E essa minha cinza, o teu homem


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A Senhora da Lira

Acontece de a minha alma se lembrar de si. A existência infecciona, meu acordo com ela se desestabiliza. Os pontos se abrem e minha vida se debate dentro do quarto, com loucura de cela, morde-me e não encontra em mim, em si, com o que se bastar, exige luz, beleza, amor. A criatura sente o tempo a mordê-la igualmente, arrancando pedaços, conduzindo-a para longe das possibilidades, instigando a fome, o desespero. Com seus dentes em minha cabeça faço perguntas cheias de ódio e revolta que não podem ser respondidas, a pessoas que estão longe, entro em diálogos circulares, impossíveis.  A criatura é um grande “agora!” em carne viva, uma manhã encaixotada na dispensa com o azul estragando, uma noite vestida de noiva para um casamento que não haverá – e ela sabe disso. Sinto-lhe a dor toda, seu potencial frustrado para a beleza, tenho-lhe imensa pena, nada posso fazer por ela, só queria que ela parasse de urrar, arrancá-la de mim.

Telefono a Braga.

– Alô.

– Atende essa merda – digo, encenando um tom raivoso e sombrio, de canto de boca.

– hahaha! Atende essa boceta! – responde Braga, no mesmo tom, colocando peso nas palavras – Fala, Marco Aurélio!

– E aí, como vão as coisas? Aquela bosta?

– Aquela bosta.

– Aquela desgraça – digo entre os dentes cerrados, arrastando a palavra.

– Essa mesmo. E você, que tá arrumando?

– Porra nenhuma... to com a cabeça meio zoada hoje.

– É mesmo, o que é que houve?

– Nada de mais, o de sempre, eu acho.

– Aqueles esquemas – diz Braga.

– Tipo, por aí. To meio fodido aqui, sabe?

– Sei – responde – Uai, cara, passa aí pra gente conversar, vamos tomar um café aí.

– Não quero incomodar as meninas.

– Nada, a Paulinha levou a Sofia pra casa da avó.

– Só. Velho, eu tava até querendo ver se você tem aquele lance aí.

– Hmm, acho que tem um pouco ainda, do casamento da sobrinha da Paula. Eu tinha guardado um resto aqui.

– De casamento funciona bem, estão bem secas?

– Tão sim, Marco, dá pra fazer tranquilo.

– Rola uma evocação então? Não quero atrapalhar, hein! Eu me viro aqui.

– Nada, eu bem que ando precisando também, chega mais!

– Beleza, daqui a pouco to batendo aí, então.  Vou levar o instrumental, to com um fino aqui da Noruega que vai servir bem.

– Massa, Noruega é responsa! Até mais tarde!

Calço os coturnos, visto-me, transfiro alguns sons para a memória de um dispositivo portátil e saio para a casa de Braga.

Braga tinha um quarto de fundos com uma estante de ferro com livros, caixas com material de desenho e pintura, uma prancheta, um velho sofá, um aparelho de som, um computador antigo. Uma pequena mesa ao lado da prancheta mantinha pincéis, recipientes com água, tinta. Foi desocupada para dar espaço a uns tijolos e uma bacia de ferro que foi colocada sobre eles. Moveu-se a mesa para o centro do quarto. O computador já transferia para as caixas de som algumas das músicas que eu selecionara para o trabalho. Carrego um humor de monóxido de carbono, mas deixo escapar um riso seco: Daniela teria odiado esse som.

O anoitecer vem chegando, falamos pouco, um pires com velas é colocado ao lado da bacia. Dentro dela ardem alguns pedaços de carvão. Um buque de flores ressecadas aguarda ao lado. Sobre a mesa há também algumas folhas de papel e duas canetas, outro pires e uma colher. O telefone toca, é Paula. Temo que tenha adivinhado com o radar de sua inconveniência e vá criar algum problema, mas avisa a Braga que teve um mal estar súbito e decidiu dormir com a filha na casa da mãe, o que tomo como um bom sinal. Prosseguimos.

As guitarras elétricas já se demoravam mais de oito minutos na descrição da paisagem desolada que pintavam em cinza, quando o piano vem abrandar com doce melancolia a áspera filosofia sonora que vibra no quarto e nos envolve. É tempo. Braga toma o arranjo de flores secas e toca com ele a brasa ardendo dentro da bacia. Vem a fumaça, o fogo. As chamas aumentam e o arranjo lhes é entregue. Tomo uma folha de papel, rasgo um pedaço e escrevo “sinto que já te conheço há muito tempo”. Dobro e o deixo separado a um canto. As flores enrugam na bacia, escurecem, se desmancham. O som prossegue sua marcha como um vulto severo, guiado pelo andamento lento e marcial da bateria. Tomo outro pedaço de papel, repasso os pensamentos que desde cedo se mantinham infernalmente comigo, escolho um, escrevo na folha “já somos mais do que amigos”. Braga também faz suas anotações, dobrando o papel e o separando. Pego mais um pedaço, encosto a ponta da caneta na folha, inicio uma frase, paro. Suspendo a caneta por um momento, expiro para expulsar parte da ansiedade escura e fria que se acumula. Considero a frase que tenho em mente, busco uma outra, retorno a ela. Por fim escrevo “eu também te amo, Marco Aurélio”. Dobro. Braga lança suas notas à bacia para queimar com as flores, faço o mesmo. O ambiente segue se densificando com a fumaça e a música. Palavras vão se reduzindo a pó.

Quando as flores e as notas se desintegram de todo, só a luz das velas nos ilumina. No fundo da bacia de ferro resta uma massa seca e escurecida, alguma fumaça ainda sobe. Braga pega a colher e recolhe parte do pó, depositando-o no pires até que haja o bastante. As guitarras enquadram a existência com verdades retas e implacáveis, dizem “não”, “nunca” e “acabou”, a bateria marcha estoica para o fim como uma legião romana, o piano pontua gravemente algumas notas espaçadas. Braga faz um movimento com a mão oferecendo-me o material no pires.

Dobro as mangas da camisa, pego um punhado de pó com a mão direita e esfrego em meu pulso esquerdo. Recolho um pouco com a mão esquerda e esfrego meu pulso direito. Sinto a ansiedade diminuir, desacelero. Toco a cinza de novo e levo os dedos à testa, cortando-a horizontalmente com um traço negro. Minha mente vai silenciando como uma casa de marimbondos que estivessem morrendo, até que já não tenho perguntas, já não formulo acusações, já não denuncio inconsistências ou contradições, já não me cortam as palavras que eu não disse. Param os desgastantes monólogos mentais, os diálogos com pessoas ausentes. Não planejo mais, já não imagino palavras ou gestos que possam corrigir tudo, deixo o mundo ir, está perdido. Recolho outro punhado de cinzas, coloco a mão sob a blusa e esfrego o peito em movimentos circulares, deixando sobre a pele uma mancha escura. Logo não sinto mais saudade, ou angústia. A raiva e a revolta cedem. Não desejo nem espero, sinto-me vazio e seguro.

Começo a distinguir mais claramente as vozes de duas entidades que nos acompanhavam durante o trabalho, e a sentir-lhes as presenças. Há um homem que se manifesta através de frases sussurradas e vocalizações abstratas, mas plenas de uma vasta paz feita de ruínas. Acompanha-o uma soprano a fazer vibrar lamentos ao longe.  Sinto que a entidade masculina se aproxima. Braga conduz seu próprio ritual com o pó, eu levo a mão ao pires e pego mais uma pequena porção. Aplico sobre as pálpebras cerradas, abro os olhos novamente. Vejo o Homem Cinza diante de mim. 

O homem cicatrizado, o homem de asfalto, o homem oco, o inatingível imenso desumanizado derrotado vazio diante de mim, o pós-homem intocável, é belo e assustador como veneno sem cor dentro de uma ampola. Sua presença é como a tarja preta numa caixa de comprimidos. Sua expressão é como o concreto, como o silêncio. O Homem Cinza tem a feição da quimioterapia e nada, absolutamente nada, no olhar. Ele vem em minha direção, dou um passo para trás, ele avança. Esbarro as costas em algo, giro a cabeça, o Homem Cinza está ali. Assim devem se sentir os suicidas quando percebem que vão conseguir, e que não há mais como evitar. Uma mão enorme e fria se posta sobre meus olhos. A esquerda cobre meu peito. Terror. Apago.



Nasço deitado sobre escombros, num existir sem passado. Ao alcance da minha mão há um recipiente de vidro tampado, e qualquer coisa dentro dele. Estendo o braço e o trago para junto dos olhos: tem no interior um pedaço de papel com duas letras: AR. Amplio o círculo da minha atenção e vejo mais fragmentos, de ferro, concreto, vidro. Sento-me, olho em volta: tudo ao redor, até onde se pode ver, é um cenário demolido, é Dresden e Hiroshima bombardeadas. Aqui e ali alguma parede incompleta ou um feixe de ferro retorcido elevam-se dos entulhos, mas não muito. Ainda se vê o traçado de alguns edifícios. Noto outro recipiente meio enterrado entre os destroços próximos. Deixo o que está comigo e o pego: também tem um pedaço de papel dentro, com a letra M escrita nele. Uns três metros distante, deitado, está outro, e a um metro deste, estão mais dois. Levanto-me e apanho o primeiro. Tem a sílaba CO. O segundo tem um pedaço de papel onde se lê ELI, o seguinte guarda as letras AUR. Não vejo nexo na sequencia das letras, e intuo que não devo tentar reuni-las, que é de alguma forma triste e ruim o que está ali, e deve permanecer selado. Deixo os frascos para trás e caminho alguns passos, levantando o olhar para o horizonte devastado que se estende sob um céu de chumbo.

Vejo uma janela ao longe, emoldurada por uma parede interrompida. Na borda da janela há outro recipiente de vidro. No chão, alinhados à parede arruinada, mais dois. Próximo a essa estrutura está o Homem Cinza, fechando outro recipiente e o colocando a seguir junto de um monte de tijolos quebrados, argamassa seca e ferro torcido. Seu enorme vulto desaparece depois, atrás da parede. Vou em direção àquela janela no nada, a abrir-se para coisa alguma, aquele retângulo suspenso no absurdo. Aproximo o rosto do vidro na janela, é como os que vira antes e tem um papel com a letra D. Agacho-me para examinar os outros. Um tem as letras EL, o outro tem um A. Sigo em direção ao vidro que vira o Homem Cinza lacrar, mas me detenho ao notar que no canto daquele resto de parede, rente ao chão, um pequeno ramo de capim está brotando. Sinto que sua presença ali é errada, que de alguma maneira ameaça o status quo do plano sem tempo em que estou. Arranco esse verde dissonante pela raiz. Noto mais um ramo, porém, crescendo ao lado do último frasco de vidro deixado pelo Homem Cinza, o que guarda as letras AN. Arranco-o também, e a um outro que crescia próximo a ele.

No amontoado de pedaços onde o último vidro fora colocado, um fragmento de azulejo se destaca. Meu olhar é atraído para o padrão do desenho dentro e sinto uma palpitação inexplicável desestabilizar a paz cinzenta que me cerca, surgem-me dentro como um agudo desagradável uma parede azulejada, um corpo contra a parede, a ideia abstrata de um vermelho, um perfume, pele, bocas, contato... O fluxo é interrompido, uma grande mão se interpõe entre meus olhos e o estilhaço colorido, escondendo-o. Então ela se vira e fica como que a esperar que eu lhe entregue algo. Deposito sobre a palma fria os ramos verdes que arrancara e percebo que junto com eles entrego uma mecha de cabelo tingido. O Homem Cinza encerra tudo entre dedos ásperos, eleva o braço paralelamente à linha do horizonte e abre a mão, dispersando no ar uma poeira negra. Observando-a desaparecer, resta-me a pálida impressão de algo que me afligiu, um vermelho alarmante que desbotou até sumir, de algo ruim que estava aqui e se foi, não lembro o que. Volto à pureza anterior sob a égide da grande entidade, de seu reino terminal, sua música desenganada e incompreendida. Recebo a bênção do seu pesado entorpecimento, e me deixo estar recostado contra as ruínas opiáceas, de olhos fechados, sorrindo.


O Homem Cinza tomou-me feito em facas, navalhas, pregos, lascas e arestas, recebeu-me em sua indústria e devolveu-me feito em placas reluzentes de aço perfeitamente planas e retangulares. Meu grito é de novo um coágulo, minha raiva é de novo sólida e imóvel, não queima nem borbulha, está transubstanciada em cubos opacos e silenciosos, empilhados em estantes como carrancas minimalistas, embrulhados a vácuo em embalagens de plástico. O desespero em que me debato e afogo está guardado num galpão na forma de milhares de recipientes de vidro enfileirados sem se tocarem, cada qual guardando quieta uma porção da profundidade dividida desse mar revolto a ferir-se de novo e de novo contra uma rocha. O Homem Cinza isola e desassocia. Meu dentro é industrializado, transformado e empacotado. A matéria ácida da minha dor agressiva sobe aos céus como fuligem e desce sob a forma de finas gotas frias, já sobre um outro mundo e um outro eu.

Deixo-me estar ainda, encostado. A consistência do ar vai mudando, chega um frio agradável. Minha pele recebe a melancolia que cai em finas partículas e embeleza as ruínas eternas, modificando-as. Sinto a presença de outra entidade agora. Vêm sons de guitarras elétricas, cordas de aço arranhadas com força e lentamente, distorções terminando em ecos prolongados, sobrepostos, espectrais, uma voz feminina sustentando notas que vão subindo em espiral, vibrando. Mas você está em silêncio em mim, o seu jardim todo, canta, e repete numa escala mais elevada. Eu já tinha visto a Senhora da Lira trinando entre os escombros, ou mergulhada na luz filtrada pelos vitrais da sua catedral. Manifestava-se como uma mulher de meia idade usando um vestido vitoriano simples, escuro e esfarrapado na base, descalça e trazendo grossos cacos de vidro enterrados nos pés.

Um toque delicado em meu rosto, uma carícia de porcelana o percorrendo até o queixo e a levantá-lo, abro os olhos. Tenho as costas contra um poste, já não são ruínas, estou sentado em uma calçada. A Senhora da Lira se inclina e segura minha mão, puxando-a delicadamente em um gesto que me convida a segui-la, e afasta-se indo para o meio da rua, levando as mãos ao peito e libertando suas notas, a expressão enternecida de senti-las. A entidade usa outra roupagem dessa vez, mostra-se como uma pequena mulher de cabelos curtos que tem algo de um gatinho gordo ou uma joaninha, com o rosto delicado parcialmente encoberto por uma mecha negra que cai como uma pincelada e termina como a perna de um a, escondendo um dos olhos redondos no percurso. Não veste o corpo esguio de sua versão vitoriana, mas guarda proporções sensuais dentro de sua estatura de criança. Usa uma jaqueta de couro sobre um vestido preto que termina um pouco acima dos joelhos, e meias que cobrem as pernas brancas rechonchudas, mas se desmancham e se esfarrapam próximo aos pezinhos nus e atravessados de vidro.

Não apenas a entidade mostra-se de outra forma, sua catedral mudou. Estamos sobre uma pista de asfalto que uma chuva fina umedece e os vitrais são aquarelas de luz criadas pelos reflexos das lâmpadas e dos sinais urbanos. Grandes manchas verdes e vermelhas derramam-se no chão negro e recortam dele a silhueta que caminha à minha frente, cantando sob um céu cinza-alaranjado, os pés sangrando no asfalto molhado. O som tornou-se menos áspero, mais etéreo, não mais soterra, ecoa. Eu também me transformei. Deixo-me levar pela música, pela luz, pela leveza. Mas você está em silêncio em mim, o seu jardim todo, numa canção de luz que eu não toco. Sigo a Senhora da Lira pela estrada que brilha, bebo luz e som, flutuo. Uma fileira de luzes de gás floresce no nosso caminho e faz mais à frente, na curva, um traço luminoso subindo ao céu.

Vou, e quando retorno, estou morto e sou belo. Caminho sobre o mundo um centímetro ou dois acima dele. Sou um outro que segura uma xícara de um certo jeito, que anda de uma certa maneira. Sou um azul profundo quase negro numa pintura abstrata e austera, tenho dentro uma pincelada icônica e grave em tom frio. Sou alto e profundo, elegante, levemente triste. Estou reorganizado numa oitava acima, sou uma fonte de águas correndo calmas no monumento que me celebra morto. Sou uma catedral que pesa e eleva, não o peso a me cair por sobre. Sustenta-me a equação de um arcobotante. Sou uma frase precisa sobre o mundo dita em tom blasé o condenando, e o gesto gentil e humanista apesar dela. Sou um outro que procuro sempre, mas que raramente consigo fazer montar e permanecer comigo, e que se perde consumido pelo cotidiano e se gasta em dezenas de irritações mesquinhas e ansiedades cruéis. Sou o sumo fino extraído de mim e tratado com procedimentos alquímicos, não o bagaço dos meus dias, e vou sorvê-lo ciente disto ouvindo um som, vendo a chuva lá fora - e quiçá acompanhado.

Tomara que dure ao menos uns dois dias dessa vez. 

Acordo no quarto dos fundos do Braga, jogado no sofá. Não o vejo, deve ter ido deitar-se. Deixou um envelope próximo, com um resto de cinzas dentro para qualquer eventualidade, amigo é pra essas coisas. Não sei quanto tempo dormi, é alta madrugada. Lavo a cinza do rosto e dos braços na pia do banheiro. Deixo a porta encostada e saio, Paula deve chegar pela manhã, não quero vê-la. Chove levemente na rua, não chovia quando saí de casa. A sombra de uma música vem à minha cabeça quando vejo os longos reflexos do semáforo no asfalto, mas não me machuca. Sinto-me cicatrizado, concretado por dentro, acho que tenho o que fui buscar. Só quero dormir. Quando entro em casa, já amanhece, mas fecho a cortina do quarto, rasgo um pedaço de noite para mim, quero embrulhar-me nele. Vou dormir de roupas, desde que me deite já. Tiro as botas, o casaco, tiro do bolso as chaves, o envelope com cinzas, algumas moedas e notas, deixo sobre a escrivaninha, alguma coisa vai junto, uma folha de papel dobrada, não me lembro de a ter colocado no bolso, o que seria, desdobro. Está escrito nela, com a minha caligrafia: “eu também te amo, Marco Aurélio”. 



quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Cubo

Trago o desespero no bolso.
Tenho um ruído discreto no motor, meu volante
Puxa um pouco para um lado. Forço,
E guio reto adiante.
Pareço opaco, sou silencioso.
No fundo sou óbvio, sou fácil,
Traio o que preciso a cada passo.
E o que preciso, passo a frio.
Sou gentil, sou homem, o provedor,
Um maldito pilar, você pode se apoiar.
Não vou mostrar que tenho fome
Nem implorar por amor.
Quero cair de joelhos, desmanchar,
Mas jogo, eu sei trazer em cubos
O mar onde me afogo.
Um dia talvez, um tiro, uma corda,
Sem teatro.
Eu sei montar em cubo
Meu eu rachado em blocos.


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Um sol e um sítio sem dor

No dia depois de aceitar
Nasceu metade do sol
E veio uma tarde bonita demais
Pra ser vista a partir de mim

No dia depois de aceitar
Quero limpar a tarde, encontrar
Um sol e um sítio sem dor
Um sol e um sítio sem dor

Eu quero a tarde sem mim
Eu quero o brilho do sol sem mim


quinta-feira, 16 de maio de 2013

A minha ilha

A minha ilha de escuridão,
A minha ilha de gentil escuridão,
Está quilômetros adentro
De um apartamento,
A uma cortina do sol
E do centro da cidade.

Um trago de noite e de delicadeza
Flutuando engarrafado em concreto armado,
Com uma flor, um quadro, um som
Que é vastidão em seu metro quadrado.
A minha ilha de escuridão,
A minha ilha de gentil escuridão.



sábado, 9 de março de 2013

Quarta-Feira de Cinzas - Laço

Adriano Bê (composição, violão e voz) e Kim Gomes (guitarra) tocam Laço no sarau Quarta-Feira das Nossas Cinzas, na Casa Cultural Matriz.





sábado, 2 de março de 2013

Carlos Alexandre

Algo morreu entre eu e os meus amigos
Que não quiseram saber
O que fizeram com você

Algo morreu entre eu e os meus amigos
Que disseram que você
Não queria trabalhar

Algo morreu entre eu e os meus amigos
Que não souberam que você
Ainda ouvia o trem passar

Algo morreu com um ano e oito meses
Mas são ditas tantas vezes
Tantas coisas tão boçais

Algo morreu e eu me senti mais sozinho
Não tanto quanto você
Naquela foto aos três aninhos

Alexandre,
Carlos Alexandre...
Alma em sangue
Carne e alma em sangue...
Alexandre,
Carlos Alexandre...
Os enxames
Calem os enxames...